O homem não pode deixar de pecar e de continuar em
seu caminho desviado, a menos que, e até que seja endireitado pelo Espírito de
Deus.
- Martinho Lutero
Como dissemos anteriormente, começamos um novo tipo de
postagem no Voltemos ao Evangelho: Voltemos aos Clássicos, onde
iremos ler e discutir juntos um livro que seja um clássico da literatura
cristã. Para esta discussão era preciso ler o capítulo 3 (até a página 85) do
livro Nascido Escravo.
Próxima Semana:
Nascido Escravo, capítulo 4
Romanos 9! Uma hora ia chegar, não? Não há como
debater sobre “livre-arbítrio” sem falarmos de Jacó e Esaú e do famoso
“endurecimento de Faraó”. Neste terceiro capítulo, Lutero trata da
interpretação de Erasmo de Romanos 9 e dos textos lá citados, Êxodo 9.12 e
Malaquias 1.2-3.
Mas antes de começarmos, devemos reconhecer que este
certamente não é um assunto fácil. O próprio Lutero confessa, com imagens
fortes, o conflito interior que teve, mais de uma vez:
Naturalmente, os homens objetarão ao pensamento que
Deus – que é bom – os possa abandonar, endurecer e condenar, como se Ele
tivesse prazer com os pecados e tormento eterno deles. Já tropecei, eu mesmo,
nesse ponto por mais de uma vez, caindo no mais profundo poço de desespero,
desejando nunca ter nascido. (Isso sucedeu antes de eu reconhecer quão saudável
é esse desespero, e quão próximo ele está da graça divina.) Essa é a razão pela
qual os homens têm tentado encontrar “explicações” e manter seus próprios
raciocínios em detrimento do que é plenamente ensinado pela Palavra de Deus.
Conduto, somos chamados a conhecer a Deus e
adorá-lo em toda a sua majestade. Não podemos deixar uma parte de lado, porque
não gostamos ou porque é muito difícil. “Conheçamos, e prossigamos em conhecer
ao Senhor” (Os 6.3), reconhecendo nossas limitações e pedindo o auxílio da
graça divina.
Deus endureceu o coração maligno
de Faraó
Como dissemos, Lutero irá contestar a interpretação
de Erasmo sobre Romanos 9. Primeiramente, Lutero acusa Erasmo de interpretar
“as palavras: ‘…eu lhe endurecerei o coração…’ , como se elas significassem:
‘Minha longanimidade, mediante a qual tolero o pecador, e que leva outros ao
arrependimento, faz apenas com que Faraó torne-se cada vez mais obstinado em
sua impiedade’”, e de inverter o sentido de “endurecerei o coração de Faraó”
para “Faraó endurecerá o seu próprio coração” (70).
Lutero afirma que devemos aceitar o sentido mais
claro do texto a menos que tal explicação seja absurda (69) e que o sentido
claro do texto é:
Quando Deus disse: “Endurecerei o coração de
Faraó”, Ele estava dizendo: “Farei com que o coração do Faraó se endureça”.
Deus, com a mais absoluta certeza, sabia e, com a mais absoluta certeza,
declarou que o coração do Faraó se endureceria. Com idêntica certeza, Deus
sabia que o Faraó não poderia impedir as ações divinas contra si. E Deus
igualmente sabia que, como resultado disso, o Faraó certamente tornar-se-ia
pior. Uma vontade maligna pode querer somente fazer o mal. Mesmo quando Deus
traz algum bem para exercer uma influência benéfica — como no caso do evangelho
— a vontade maligna só pode tornar-se pior. Ela torna-se mais endurecida. (75)
Agora, é importante fazer uma observação. Alguns de
vocês possivelmente estão pensando, “como Deus poderia fazer isso com um
coração puro? Deus tornou o coração de Faraó mau?” Não é isso que Lutero está
afirmando, pois não há “coração puro” no homem caído! O fato de Deus endurecer
o Faraó não significa que Deus está endurecendo um coração neutro. Lutero
afirma repetidamente que Deus estava endurecendo um coração perverso! Eis a resposta
de Lutero:
“A minha resposta é que, à parte da graça da
eleição, Deus trata com os homens em consonância com a natureza deles. Visto
que a natureza deles é maligna e pervertida, quando Deus os impulsiona para que
entrem em ação, seus atos são malignos e pervertidos.” (73)
“Deus não cria uma nova maldade no coração dos
homens. Antes, Ele se utiliza do mal que já se encontra no coração deles,
visando aos seus próprios bons e sábios desígnios.” (74)
Resumindo, Deus endurece, sim, o coração de Faraó,
mas isso não se opõe à natureza de Faraó. Deus endurece um coração de pedra.
Por que Deus não altera então a
vontade perversa de pessoas como Faraó?
Eis o que Lutero diz:
Por que Deus não altera a vontade perversa de
pessoas como Faraó? Essa questão toca na vontade secreta de Deus, cujos
caminhos são inescrutáveis (Rm 11.33). Se alguém que é orientado por sua razão
humana, fica ofendido por causa disso, que assim seja. As queixas nada mudarão,
e os eleitos de Deus permanecerão inabaláveis. Poderíamos também perguntar por
que Deus deixou que Adão caísse! Não devemos tentar estabelecer regras para
Deus. Aquilo que Deus faz, não é correto porque o aprovamos, mas porque Deus
assim o desejou.
Se Deus previu algo, esse evento
pode ser alterado?
Lembra que eu sugeri separarmos as esferas de
discussão sobre livre-arbítrio: salvação e providência? Aqui, o debate migra
para providência. A pergunta que nos devemos fazer é: se Deus previu algo, esse
evento pode ser alterado?
Para Lutero, a presciência divina elimina o
“livre-arbítrio” (76-77) e se este existe, então Deus “seria uma divindade
muito débil e patética se a sua presciência fosse indigna de confiança, e se
pudesse ser contrariada pelos acontecimentos” (78).
Porém, quando Deus prevê alguma coisa, ela acontece
porque Ele assim previra. Se você não aceita isso, mina todas as ameaças e
promessas de Deus. Você nega o próprio Deus. (77)
A razão natural precisa admitir que Deus seria uma
divindade muito débil e patética se a sua presciência fosse indigna de
confiança, e se pudesse ser contrariada pelos acontecimentos. (78)
Erasmo afirma que “na inquebrantável presciência de
Deus, Judas foi fatalmente destinado a tornar-se um traidor; mesmo assim, Judas
era capaz de mudar a sua vontade”. Lutero acha isso contraditório, pois se
Judas pudesse mudar sua vontade, então Deus teria previsto errado. Ou seja, se
Deus previu A, poderia B acontecer? Se a resposta é não, para Lutero, o homem
não pode ter “livre-arbítrio”.
Amei a Jacó e aborreci a Esaú
Vamos para o próximo texto polêmico: “amei a Jacó e
odiei (ou aborreci) a Esaú”. Uma das respostas de Erasmo continua muito comum
hoje: “o ódio de Deus não é igual ao do homem” (hoje as pessoas afirmariam que
“odiar significa amar menos”). Mas, como Lutero aponta, essa não é a questão!
Ele diz: “Ora, todos sabem que o amor e a ira de Deus não se assemelham às
paixões humanas; porém, a questão com que ora nos defrontamos não requer que
perguntemos como Deus ama ou odeia, mas por que Deus ama ou
odeia” (81).
Ou seja, você está fazendo a pergunta errada. Mesmo
que aborrecer signifique “amar menos”, a grande questão não é essa, mas, sim,
por que Deus aborreceu, odiou, amou menos (como queria).
Então, por que Deus aborreceu Esaú? A resposta
usual é que Esaú era perverso. Sim, isso é um fato, mas não é isso o que o
texto de Romanos 9 diz! Eis o que Lutero responde:
“O amor e a ira de Deus não estão sujeitos a
alterações, conforme ocorre conosco. Em Deus, ambos são eternos e imutáveis.
Foram fixados muito antes que o “livre-arbítrio” fosse possível. Vemos nisso,
que nem o amor nem a ira de Deus esperam pela reação humana, mas antecedem à
mesma. […] O que poderia ter feito Deus amar a Jacó ou odiar a Esaú?
Certamente, não por qualquer coisa que eles tivessem feito, pois a atitude de
Deus para com eles foi estabelecida e declarada antes mesmo de terem nascido, e
não havia muita atuação do “livre-arbítrio” naquela ocasião! (81)
Cada vaso em seu lugar
Por fim, temos o texto do vaso para honra e para
desonra. Erasmo puxa 2 Timóteo 2.20-21 (“Se alguém se purificar dessas coisas,
será vaso para honra”) para mostrar que o vaso de Romanos 9 tinha
livre-arbítrio, pois purifica a si mesmo. Ou seja, texto fora de contexto.
Lutero mostra como os textos estão falando de coisas totalmente distintas,
apontando que 2 Timóteo fala sobre “a piedade pessoal do crente” (83).
Mas isso é injusto!
Muitos respondem que essa interpretação tornaria
Deus injusto. E é justamente o que Paulo antecede na discussão de Romanos 9.
Lutero diz:
Agora você apela para o raciocínio humano. Não pode
aceitar o direito que Deus tem de lançar os ímpios no fogo eterno. Pois,
conforme você sugere, isso não é razoável, porque Deus criou os ímpios conforme
eles são. E assim a verdade vem à tona! Você assume a mesma postura dos
queixosos, que Paulo cita, em Romanos 9.19: “De que se queixa ele [Deus] ainda?
Pois quem jamais resistiu à sua vontade?” Isto posto, a razão humana demanda
que Deus aja de acordo com as ideias humanas acerca do que é certo e do que é
errado; e o Soberano que criou todas as coisas deve submeter-se à sua própria
criação!
[…]
Quando Deus salva aqueles que merecem a condenação,
ninguém reclama. Mas, quando Deus os condena, ouve-se um grande protesto. (84)
Sua vez!
1) Quem
endureceu o coração primeiro? Faraó ou Deus?
2) Por
que Deus amou a Jacó e aborreceu a Esaú?
3) O que
mais chamou a sua atenção neste capítulo?
4) Algo
que você discordou?
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